Sunday, November 24, 2019

POR MAIS MOMENTOS DE CATARSE


O que é catarse?
Segundo os dicionários, catarse provém do grego “kátharsis” e é utilizado para designar o estado de libertação psíquica que o ser humano vivencia quando consegue superar algum trauma como medo, opressão ou outra perturbação psíquica. Através de terapias clínicas como a hipnose ou a regressão, é possível resgatar as memórias que provocaram o trauma, levando o indivíduo a atingir diferentes emoções que podem conduzir à cura. Em momentos assim é que a arte se capaz de atingir as pessoas de uma forma única. É algo parecido como uma comunhão. E isso é feito em todas as religiões, onde a alma se purifica, faz um expurgo espiritual. Não a toa que o doc sobre o último show da turnê mundial do Depeche Mode tem o nome de “Spirits in the forest”. É mais do que uma alusão ao nome do álbum que é título da turnê. É aquele toque que a alma precisa para consolidar um momento único, capaz de dar sentido a vida.

A turnê que incluiu até o Brasil terminou no anfiteatro de Berlim, acostumado a receber shows de megaestrelas devido ao seu formato que permite uma acústica sem igual. O DM percebeu isso e acostumado a plateias de 50.000 pessoas preferiu reduzir o espaço para o formato de anfiteatro e oferecer uma experiência sensorial maior. O show em si não tem pirotecnia, efeitos especiais, lasers, pessoas voando, explosões e papel picado. Eles pensaram bem em usar metodicamente vídeos que pontuassem histórias das músicas e luzes para aguçar os sentidos e aproximar ainda mais a plateia. Para colocar os fãs ainda mais devotos e os iniciados em estado total de êxtase. Trabalho feito com sucesso e que provavelmente foi o melhor espetáculo que qualquer um tenha visto na vida.

O filme é a confirmação disso e o diretor Anton Corbijn, um ex-fotógrafo da NME e acostumado a trabalhar no mundo do pop rock com nomes como o U2 e Front 242, é também a alma visual do Depeche Mode. Ele é o suporte que deu uma identidade especial para banda desde os tempos de “Violator”, um dos álbuns mais populares. Mas não é a estética conhecida que determinou a narrativa e sim o roteiro. “Spirits in the forest”, apesar de retratar um show, não fala dos músicos, fala do público e para o público. E nesse mote que seis vidas de países distantes, se abrem, se emocionam e se confortam, colocando depoimentos como se fossem separados na maternidade.

Indra vem da Mongólia. Uma guia turística de apenas 22 anos que conseguiu aprender inglês através das músicas do Depeche Mode. Tem uma vida simples com a sua avó e se interessou pelas melodias. Correu atrás e se identificou depois com as letras, seus significados em uma vida humilde de um país fechado até anos atrás.  Daniel é brasileiro, mas vive em Berlim. Viveu todas as mazelas dos dois primeiros presidentes eleitos pós ditadura militar. Nesse meio tempo descobriu sua orientação sexual. Liz é uma afro-americana que deixou o interior do país para Los Angeles por auto identificação e realização de vida. Ela levou os dois filhos na jornada e teve que conviver com um agressivo câncer de mama. Christian vem da Romênia e é um típico “nerd”. O problema está em como ser um nerd em um país fechado para o capitalismo anos atrás? Como descobrir culturas, gostos, tecnologias, arte, ter a mente aberta vivendo em um lugar onde nada além do necessário (até comida e papel higiênico eram problemas) é oferecido?  A quinta personagem é a francesa Carine que tem um episódio de vida incomum. Em um acidente, aos 25 anos, perdeu toda a memória anterior. Perdeu também sua motricidade e mais com que a transformasse em um bebê em um corpo de mulher. Sua cura começou ao perceber que a única coisa não apagada da memória foram as músicas do Depeche Mode que ela adorava. O sexto e de história mais carismática, é a do colombiano Dizken. Um fã desde os primórdios fez vídeos com seus filhos viralizarem ao fazer versões rústicas das músicas e sem instrumentos, usando apenas brinquedos e materiais que iriam para o lixo, como garrafas pet. Seus companheiros nessa banda são os filhos (na época dos vídeos, por volta de 9 anos e hoje com 14) que agora vivem com a mãe nos Estados Unidos. Eles estão separados há dois anos e por causa da distância só conseguem alguns momentos pela internet e pessoalmente duas vezes ao ano.

E com histórias tão distintas e países tão distantes, que estes fãs costuram dilemas, exorcizam seus passados e mostram momentos que nos dão a impressão de que as nossas vidas não são ruins comparadas com as deles. Cada uma delas tem alento e identificação com alguma música do DM que é simplesmente atemporal, capaz de emocionar a filha mais velha de Dicken, com 14 anos e chora ao se encontrar nas letras. Todos acham que há aquela música que parece feita pensando especialmente na nossa vida. Aí entram os momentos do show em si, com Martin, Dave e Alan em estado puro falando de religiosidade, culpa, amores, política, envolvimento e cada fase de nossas vidas estão nelas. É impossível não ser transportado para aquele dia de março do ano passado, no Allianz Park. “Walking in my shoes”, “Precious”, “Enjoy the silence”, “Going backwards”, “Cover me”, “Where’s the revolution”, “Everything counts”, o cover de Bowie, devidamente homenageado em “Heroes” estão lá na integra.

Nessa costura, todos os seis personagens se realizam, se purificam e expurgam seus esqueletos guardados por anos para que a vida possa fazer mais sentido, depois. Eles são pessoas comuns, com problemas incomuns e que precisavam e soluções incomuns. Graças à música podemos encontrar abrigo, comunhão e viver uma experiência sem igual como a mais radical das montanhas-russas. Talvez essa seja a melhor explicação para uma pergunta: “Por que pagar para talvez só enxergar os artistas tão longe, como se fossem bonequinhos?”. A resposta mais viável está no quanto de emoção sua cabeça e sua mente estão abertos para viver um momento de experiência que não se faz todos os dias e o quanto essa experiência é capaz de expurgar o que nosso corpo guarda de ruim para poder exalar para o mundo o que há de melhor em nós. Isso é catarse. O mundo precisa de mais momentos de catarse em cada ser humano deste planeta, para que ele viva e sobreviva com mais harmonia.

Friday, August 04, 2017

BOLA NA REDE

Aloisio Santos Cinema hollywoodiano sempre foi de incensar os grandes de um estilo. Ford e Leone eram os bambas do faroeste, Spielberg retrata a fantasia como ninguém, suspense era com Hitchcock e tem os mestres dos musicais, outro de ficção científica, mas onde enquadrar Chris Nolan? Como categorizar um diretor que até o momento é conhecido por dar nós em nossas cabeças e fazer filmes não menos do que sensacionais? Pois é, talvez seja essa a sensação que temos e seria necessário colocar mais um sub-ítem na prateleira só por causa dele. Agora, quando ele mete a mão para fazer um filme de guerra aí a tendência é torcer o nariz. Afinal, é um Nolan de jeito que não estávamos acostumados a ver. Ele é um contador no estilo contemplativo. É aquele cara que se senta do seu lado e olha para o horizonte para falar de histórias épicas e deixar crianças de queixo.

Aí é que reside o trunfo de “Dunkirk”. Fazer um filme de guerra, sem soar exatamente como guerra. Guerras nunca foram necessariamente acabar com o inimigo e ser o fodão da nação. Guerra é sobrevivência e heróis que além de saber atacar, devem saber como recuar e fazer os seus voltarem para casa. Este é o ponto a mostrar no filme. A Operação Dínamo é um dos episódios mais heroicos da Segunda Guerra. São 400 mil homens encurralados em uma praia pelas tropas alemãs. Na frente, a Inglaterra distante pelo canal é ao mesmo tempo tão perto e tão longe, pois qualquer movimento seja por mar ou ar, se tornariam alvos fáceis. O improvável ali é viver.

Quem viu os últimos filmes do gênero, notaram sangue demais, tripas demais, explosões demais, tudo demais. Guerra não é assunto para Michael Bay ou Mel Gibson, basta notar que alguns dos filmes mais sensacionais do gênero quase não tem isso tudo, como “Tora, tora, tora” ou “Adeus às armas”, por exemplo. A intenção é colocar você lá dentro, na pele dos personagens e se identificar. Ficar agoniado e querer atacar, salvar, resgatar, ser vitorioso. Para o diretor você tem que ser mais um na multidão e sair de uma batalha real com todas as sensações possíveis e imagináveis.

Como conseguir isso? Um bom olhar para fazer você sentir a amplitude de um ambiente de luta (e para isso um 70mm que o IMAX proporciona é como ver um filme das antigas), um Hans Zimmer que joga a trilha no alto com um tique-taque nervoso e violinos rangendo como se estivéssemos moendo carne com os dentes, dizendo que o tempo está correndo e só depende de você se safar dessa. Boas atuações, como o ás aviador (Tom Hardy se esgoleando em um papel sentado o tempo todo), o Oscarizado Mark “Ponte de espiões” Rylance num barquinho sem violão sangrando o mar com dois adolescentes para ajudar quem estivesse na frente. Um Cillian Murphy e sua famosa cara de atormentado de sempre e claro, um shakespeariano Kenneth Branagh na visão Churchiliana de um bom comandante, com aquele nó na garganta e a empáfia inglesa de passar aos comandados sua força frente o perigo. Os demais são desconhecidos como eu e você, os grandes guerreiros agoniados por duas horas na cadeira tentando escapar.

Quem aplaudiu Nolan em todos os seus trabalhos, logicamente estranhou tudo aquilo e só quem percebeu essa mistura de agonia e poesia visual em reais tons de cinza, pode sair do cinema com o mesmo arregalar dos olhos das películas anteriores. Quem saiu dessas duas horas, como aqueles combatentes que passaram dias de agonia e glória, percebeu a coisa toda e notou que, assim como os barqueiros civis que foram cruciais nesse episódio, vão se igualar ao pensamento de Churchill pontuando o final com um dos seus discursos mais famosos, conclamando os ingleses na maior das lutas até então.


Isso faz “Dunkirk” ser diferente e espetacular. Um filme de guerra pode ir além das ideologias explícitas (ou implícitas, como neste), não precisa de super-realismos, basta colocar cada um de nós na situação e isso e tão simples como dois e dois são quatro. Pois é Nolan, você brincou conosco de novo e marcou mais um gol daqueles.

Monday, February 29, 2016

Por trás dos memes - Oscar 2016



Ok, vamos imaginar a seguinte cena: você foi chamado para uma entrevista de emprego em um badalado restaurante. Um dos mais caros e frequentados da cidade e o chef é conhecido no Brasil e no Mundo. Função: auxiliar diretamente o chef. Claro que eles irão levar você para cozinha e mostrar panelas, condimentos, talheres e etc. A prova é simples, fazer uma omelete. De repente, do nada, você olha para aquele ovo com um medo ímpar. Não sabe sequer como quebrar a casca. O chef começa a desconfiar das suas atitudes e sua falta de iniciativa e pelo menos, ajuda a quebrar o ovo. O próximo passo é mexer clara e gema para colocar na frigideira. Você não sabe nem onde colocar tudo, nem como mexer, nem que instrumento usar. E confessa que não sabe até o que é uma frigideira, onde deveria colocar tudo e fazer a bendita omelete. Claro, que o fato é figurativo, mas aconteceu ontem, na transmissão da Globo do Oscar 2016.

Glória Pires é atriz global literalmente desde criancinha. Assim como a Suzana Vieira, elas devem ter um código de barras tatuado no braço indicando que são patrimônio da casa. Ela fez alguns filmes e novelas e supostamente isso a credenciaria para comentar a premiação. Só que não. A cada estatueta entregue ou filme indicado, foi monossilábica, como se estivesse representando a Raquel, de “Mulheres de Areia”. Total desdém e conhecimento sobre o assunto a ponto de por vez dizer que não teria o que opinar porque simplesmente NÃO VIU O FILME INDICADO. É isso mesmo. Ela, a comentarista da maior entrega de prêmios do cinema em todo o mundo, não tinha visto o filme. Lógico que até quem não é uma referência em cinema, mas pelo menos viu algum dos indicados da premiação, caiu de pau em cima. Blogueiros e instagrammers fizeram a festa. Memes e piadas em tempo real. E a comparação com o candidato a cozinheiro é mais do que pertinente. Você contrataria alguém incapaz para o cargo (ou sequer estudou para isso) fazer a prova ou mesmo executar a função? Pois é, eu não.

A atriz aceitou o convite, sabe-se lá como e porque. Talvez aproveitou a situação de anos de casa para fazer o que fez ou apenas servir de bucha de canhão para uma transmissão que a cada ano tem o interesse da Globo minimizado, a ponto de ter quase uma hora de evento cortado por causa do Big Brother, mas isso não justifica. Tem telespectadores, tem patrocinadores, tem audiência e todos merecem o mínimo de informação coerente. Em qualquer empresa, uma pessoa que tenha uma ação dessas seria suspensa ou demitida por justa causa.

Pena, Gloria Pires. Ao prestar esse desserviço deixou uma impressão terrível. O brasileiro faz piada de tudo, mas na verdade não é para zoar. É para agir contra mesmo. Independente dos motivos que a fizeram tomar essa atitude, muitos no mesmo lugar sequer aceitariam o convite deste trabalho se não se sentissem capazes ou à vontade para fazê-lo. Só para citar nomes globais, a Xuxa deixou a emissora e o Jô Soares vai sair mais uma vez e eles rendem mais grana para a emissora do que a atriz. Eles acharam que não há mais lugar para eles e fizeram isso porque quiseram sair. A menos que o Daniel Filho e o Gilberto Braga sejam muito amigos dela, certamente ela deveria deixar as barbas de molho. Os executivos “mais inteligentes” irão minimizar o fato e fazer reportagens diversas em vários programas exaltando os sucessos dela para apagar o melê que rolou. Na pior das hipóteses deixar no freezer por um tempo. Pior é imaginar que a transmissão do Oscar, que tem base jornalística, se permitiu que isso acontecesse. Depois não reclamem se a audiência cair, não comprarem mais jornais e perderem espaço para os blogueiros de plantão e os pitaqueiros do You Tube.

Pode ter sido engraçado, mas #soquenao.

Monday, February 22, 2016

EXERCÍCIOS



Ele bem que tentou por anos e anos e bateu na trave. Leonardo DiCaprio até o momento ganhou quase todos os prêmios que um ator poderia sonhar, menos o Oscar. Já trabalhou com vários dos melhores diretores de Hollywood, Scorscese, Spielberg, Cameron e agora, o diretor vencedor do ano passado pode lhe dar esse passaporte com o filme “O regresso”.

Alejandro Gonzalez Iñárritu gosta de trabalhar com a imagem das pessoas e o que o dia a dia pode lhes trazer de bom ou ruim. “Amores perros” foi seu passaporte para o cinema americano e com “Babel”, um bom exercício sobre etnias, guerras internas e claro, as que vemos nos noticiários. Este mundo à parte dos telejornais talvez serviu de base para seu filme mais recente e poucos provavelmente tenham dado conta disso. Por trás da história baseada em fatos reais de uma vingança que parecia não ter fim, devemos estar sempre atentos a algo que pouco realmente fazemos: o exercício da tolerância.

Hugh Glass, personagem de DiCaprio, faz parte de uma equipe de exploradores e comerciantes de peles no velho Missouri. Por um desses “acasos”, ele tem um filho meio-indígena e sua vivência com os índios o fez ter uma capacidade ímpar em sobrevivência nas florestas e em situações adversas. Conhecedor de todas as etnias, de todos os caminhos, ele é um guia a ser respeitado pelo seu comandante, mas profundamente desvalorizado pelos homens de “pele branca”. O suficiente para despertar a cobiça, a inveja e a ira de todos, dentre eles um Tom (Mad Max) Hardy que é capaz de tudo para salvar a própria pele, inclusive fazer da vida de Glass um inferno.

Após um ataque de uma tribo indígena, toda a equipe se dispersa. Glass depois é atacado por um urso pardo (isso não é spoiler, pois essa cena todos conhecem e já considerada uma das mais marcantes da história do cinema). Com a desculpa de estar praticamente morto e atrasar a vida dos demais, é abandonado pelo personagem de Hardy e à toda sorte (ou azar mesmo) que um moribundo poderia passar na floresta gelada.

Claro que a forma com que Glass resolve se levantar e juntar suas forças para voltar para a sua vingança é que seria um spoiler de verdade e não mais do que isso deve ser contado. Apenas o suficiente para que DiCaprio, tivesse os prêmios que ganhou até hoje. Logicamente que ele deve grande parte disso à Iñárritu. “O regresso” tem um movimento quase que inquieto. A técnica antiga onde nós somos os espectadores, alcança um nível de excelência, digno dos antigos filmes de faroeste e pena que não dá para ser exibido em um daqueles cinemas com telas gigantes dos anos 50 e 60. Esqueçam as salas especiais dos multiplex. Elas não serviriam para mostrar a amplitude das cenas e os rodeios das steady-cams que Iñárritu empreendeu. Na verdade, bem que esse filme deveria estar nas mãos do Tarantino, mas certamente ele não teria essa visão humanista que há por trás de tudo.

A luta entre todas as tribos indígenas dos Estados Unidos, entre exploradores e índios, homens e mulheres, é no final das contas, o mote do filme. É o nosso maior exercício saber diferenciar entre eles e nos atuais dias de redes sociais, como a intolerância nos faz tão selvagens como na América de séculos atrás. É o exercício que o diretor quer colocar novamente em nossas cabeças. Poucos notarão esse detalhe que para alguns pode ser apenas um libelo ao politicamente correto (claro, um filme com muitas cenas de violência pode servir para isso), pois o inimigo não são as tribos, os brancos e etc., mas o que carregamos de preconceito para que a nossa vida seja tão infernal quanto à dos personagens do filme.

Chato é perceber que por apuro visual, “O regresso” é superior à “Birdman”, o vencedor do ano passado. Por isso todos os prêmios conquistados até agora e que o fez tornar um favorito, inclusive DiCaprio que penou o que o diabo amassou no frio e horas e horas de maquiagem para dar mais veracidade às dores que passou. Mas veja com a calma que as quase duas horas e meia do filme trazem, que tudo é bem mais do que um daqueles exemplos de faroeste. Volta e meia os diretores gostam de revisitá-lo com um quê a mais. Eastwood e o já citado Tarantino já fizeram isso, mas agora cabe ironicamente a um mexicano colocar mais uma na placa dos memoráveis.