Tuesday, November 25, 2008

uma noite de chuva

VA-DI-A – A palavra ficou martelando em seu cérebro durante horas, dias. Meses se passaram sem que ela conseguisse apagar da lembrança o som horrendo dessa palavra. Mesmo depois que a vermelhidão das mãos passou e que as lágrimas já estavam secas e grudadas no rosto, ela ainda podia ouvir a voz grave e rouca falando baixo e com uma raiva, ainda maior e mais perigosa, porque contida: VADIA.
Quem aquele guri de 20 e poucos anos achava que era para chamá-la de VADIA, assim, sem mais nem menos? Tá certo que o cheiro de sexo ainda empesteava todo o lugar. Os rostos afogueados, lábios inchados e os cabelos e roupas em desalinho eram indícios claros e não deixavam a menor dúvida do que acabara de acontecer ali na frente de to-dos, com a conivência de pessoas estranhas. Talvez o som do tapa tenha sido pior, tal-vez tenha provocado uma dor mais profunda. Mas agora ela nem se lembrava mais dis-so, apenas se perguntava incessantemente por quê: Por que abrir novamente a caixa de Pandora? Por que destravar as portas trancadas e lacradas desde tempos imemoriáveis? Por que não dar ouvidos àquela vozinha interior que passou o tempo todo gritando NÃO em seu cérebro? Por que ceder tão facilmente e capitular sem resistir o mínimo que fos-se diante da juventude e do vigor de um menino crescido demais?
VA-A-DI-I-A. Sim, ela era a pior vadia que eles já haviam conhecido. E provou isso na primeira oportunidade que apareceu. Pra que deixar passar uma chance de ouro de mos-trar que todos estavam certos?
O dia começou mal. O tempo carregado e nublado apenas confirmava o que todos já sa-biam de antemão. A chuva não dava tréguas e tudo tinha um cheiro de mofo, de enchar-cado, de coisas que não secaram direito. As ruas estavam repletas de poças e lama e res-tos de folhas caídas e esquecidas por ali. Os guarda-chuvas pingavam nela durante todo o percurso. A manhã estendia-se indefinidamente em um ritmo alucinadamente modor-rento, nada parecia se mexer. Apenas as gotas de chuva insistiam em molhar o vidro su-jo das janelas e escorriam formando desenhos estranhos, que prenunciavam um futuro cada vez mais cinzento e perturbador.
O almoço não foi nada melhor: gritos, brigas e confusões apenas serviram para deixá-la ainda mais cansada, irritada, sem disposição. Seu instinto assassino subia cada vez mais a tona de uma personalidade já conturbada pela inércia. Conforme a tarde se aproxima-va o desespero se tornava mais opressivo e constante. O ar pesado e molhado, a falta de espaço, apenas a oprimia como se ela tivesse uma enorme pedra sobre o peito. As pes-soas moviam-se como se estivessem presas em um líquido viscoso. Nada do que fala-vam fazia algum sentido.
Finalmente, o dia terminou. Não que tenha acontecido algo que marcasse o final do dia. Não houve um pôr-do-sol, aplausos ou qualquer outra manifestação espontânea de pes-soas felizes. Apenas a chuva. Ácida e cinza, incessante. Caindo sem parar, martelando sobre as cabeças e sombrinhas. Criando mais poças, trazendo mais lama e deixando o ar mais e mais pesado.
Com os nervos em frangalhos e a cabeça dando voltas e mais voltas ela aceitou o convi-te para a festa particular. A vista do apartamento seria deslumbrante não fosse à chuva e as nuvens pesadas, que permitiam que apenas os postes de luz mais próximos fossem vistos. Mas o barulho do mar era inconfundível. E acalmava, trazia de volta uma sensa-ção de paz perdida.
A conversa inteligente e o número reduzido de pessoas acabaram por relaxá-la. Isso e a quantidade inacreditável de vinho que ela ingeria em doses cada vez maiores. E quando menos se esperava a bandida pulou novamente para fora depois de anos e mais anos quieta e adormecida, fingindo-se de morta. Não deu tempo para mais nada, quem não estava com vontade de participar do bisonho espetáculo teve tempo apenas de sair de mansinho de perto da bandida. Quem não notou que ela estava instalada confortavel-mente na sala pode se divertir como poucas vezes na vida terá outra oportunidade.
E quando tudo finalmente acabou ela ouviu as duas coisas que mais a magoaram em to-da a sua vida medíocre. A primeira ela nunca vai contar para ninguém, afinal de contas o que um bêbado fala sobre e para uma vadia, não deve nunca ser levado em conta ou mesmo repetido em voz alta por quem quer que seja, mesmo que seja apenas uma ban-dida que adora azarar com a vida de outras pessoas.
Mas a segunda coisa que ela ouviu ainda ecoa em seus ouvidos. Ainda dói em seu cora-ção e está registrado mais profundamente que uma tatuagem. VADIA. Assim, simples. VADIA: por transar com o meu melhor amigo, por não respeitar a amizade que existia entre nós dois e entre vocês dois. VADIA: por não se respeitar e por não poder ficar 10 minutos com as pernas fechadas para qualquer coisa que se mexa.
A resposta dela foi mais direta. Um tapa: seco, duro, inesperado, sem força e sem direito de revide. Mas um tapa que ecoou por todo o apartamento e fez com que suas mãos fi-cassem doloridas, marcadas, caídas flácidas ao lado do corpo que ainda cheirava a sexo e trazia em seu desalinho as marcas do ato que tinha acabado de participar. Qual a vio-lência pior, ser julgada por algo que nem mesmo pode ser considerado crime ou se de-fender sem argumentos?
A dor do julgamento feito assim às pressas e com uma frieza a que ela não estava acos-tumada fez com que o revide tenha sido mais duro do que ela poderia imaginar. Nunca antes havia batido em alguém, mas a sensação foi maravilhosa. O poder que isso repre-sentou para ela abriu sua visão para a fonte inesgotável de poder que o abuso da força física pode proporcionar.
Mas que preço ela precisou pagar para saber disso? A perda de alguns bons amigos e a descaracterização de sua própria personalidade.
Talvez tenha sido a pior transa da vida dela, talvez não. Talvez tenha sido um ato sem a menor importância. Talvez não. Mas o final de mais aquele caso de uma única noite com certeza deixou marcas permanentes em sua torturada alma.

3 comments:

Mariana Valle said...

Muito bom, Aluísio! Sabe o que isso me lembrou? O caso de um amigo em comum (você conhece) que acreditou num amigo idiota que mentiu pra ele e, por isso, no seu eterno estado de "perseguido e sofredor", foi cobrar da namorada de então que ela tinha transado com o tal mui amigo. Sendo que ela tinha ficado com o tal carinha antes de sequer suspeitar que iria conhecer o namorado e tinha só trocado uns beijos, tinha passado longe da tal propagada transa! Legal sua história. Poética e bem verídica.
Bjs

Mariana Valle said...

Desculpa, Bel. Elogiei você pensando que era o Aluísio. De qualquer forma, parabéns. Adorei o texto!
:)

Kio said...

Wow! Alguém aqui escreve não só ótimas colunas de moda e afins, mas também contos!

Gostei!